quarta-feira, 28 de maio de 2008

Os primeiros 6 meses foram assim...

Em Março editei o 1º (e único… agora tenho o bolgue.) número do Sarilhos da Mafalda… em S.T.P. Entre outras coisas explicava os projectos de que fazia parte, uns tive de deixar depois destes 6 meses, outros continuei… agora todos estão lá, em São Tomé, e eu longe, no Príncipe, mas não distante. Todos eles continuam no meu pensar, nas minhas orações e naquele acompanhar tão saboroso que um telefonema de cada pessoa, a cada pessoa relembra que estamos lá. Assim, aqui ficam alguns excertos…

“...as minhas semanas são cheias! Cheias de dar e receber, cheias de estar, um estar entre os mil e um pensamentos, entre as mil e uma saudades de partir e ficar que vou fintando com um coração cheio deste leve-leve que é o apreciar aquilo que tenho, aquilo que me oferecem, aquilo que Ele me convidou a viver. E o coração entre o cá e lá, fica no cá. Saboreando cada rosto castanho, cada sorriso iluminado, cada face salgada, cada beijo lambuzado, cada exclamação, cada atraso desconcertante pela pureza com que é vivido, cada imprevisto, e os meus dias são um imprevisto planeado num corre-corre entre cada gente que me pára, entre cada olhar, entre dedos que não se gastam num apertar de mãos, entre conversas que se têm e que por vezes apenas são um olhar, um ficar a saborear a pergunta “como vai saúdji?” “mais ou meno…” esperando já sempre no final o meu despachado “mais para mais ou mais para menos?” e o sorriso, os nossos sorrisos unem-se num ficar cumplicemente a saborear aqueles minutos. Depois… algo nos chama e lá seguimos.”

Nos CAEB’s (Centros de Apoio Escolar e Bibliotecas) e nos Campos de Férias: “É este o meu principal projecto… Assim, todas as manhãs acordo por volta das 5h30/6h e depois do pequeno-almoço sigo para Santo Amaro. Mais ou menos a 15 minutos de carro para norte da nossa casa. A nossa casa fica em Madre de Deus, uma zona da cidade capital de STP, que por sinal se chama S. Tomé. Como é que vou para o CAEB? Se algum deles tiver aulas no IDF às 7h da manhã e eu não tiver de levar nada de valor ou pesado para o CAEB, apanho boleia com eles até ao IDF e depois vou a pé. 45 minutos cheios de “bom dia” e encontro de pais e animadores que vêm para a cidade trabalhar, entre muita gente que já vou conhecendo deste andar. Se não, vou de carro praça. Um carro comunitário de cá… geralmente a cair aos bocados, “semi-novos”, mas com um excelente sistema de som, música é que não pode faltar! E claro, também já tenho confiança com os condutores e os momentos de espera para que o carro encha servem para grandes conversas filosóficas. De manhã vou sempre para Santo Amaro porque é o único CAEB que funciona de manhã, das 8h às 10h. A primeira hora e meia é constituída por apoio escolar e a última meia hora por actividades lúdico-pedagógicas, subordinadas ao tema do mês. Mas o trabalho vai muito mais fundo… os animadores precisam de muito acompanhamento, e as crianças nem em cima da linha conseguem escrever. Algumas, a maioria, chegam à 4ª classe sem saber distinguir letra, de texto ou palavra. O pior é que alguns animadores também não… e o civismo é tão, tão diferente do nosso. Para eles é fulcral o não entrarem calçados, mas, o escrever em livros de leitura, colocar apagadores e giz em cima das mesas ou garrafas de água molhadas já não constitui qualquer problema. Um trabalho de fundo é preciso. É tão, tão rico este trabalho. Desafiante o equilíbrio entre a aculturação e o que é necessário. Saber o que é o essencial. E depois? Explicar-lhes a importância do cumprimento dos horários e a assiduidade. Difícil quando crescem com a “hora de relógio” e a “hora santomense”, a hora de relógio é aquela que o relógio marca, a santomense é sensivelmente meia hora/uma hora a mais que essa, e só a partir dessa hora é que é atraso. E desde a escola à catequese esta questão está enraizada… mas que lhes dizer quando têm uma casa às costas? Quando se levantam às 4h e 5h da manhã para ir para o rio lavar a roupa? Quando têm de levar o almoço e o jantar à irmã que está no hospital? Quando chove torrencialmente e nem capa nem
guarda chuva têm? Equilíbrio… e, apesar de pequeno, o país é díspar nas zonas onde estão os CAEB’s. As crianças de Santana são mais educadas, mas o chicote lhes assenta mais vezes. As de Santo Amaro são mais ariscas e doces. As de Neves “levadas da breca” e muito meigas. E os animadores também diferem…, muito! As raparigas têm um grande peso na família e portanto em Santana apenas tenho uma, em Neves nenhuma e em Santo Amaro são metade, que é uma sociedade muito católica, mais aberta.
A tarde é dividida entre Neves, Santo Amaro e Santana. E é uma pena… porque sinto que vou conhecendo mais Santo Amaro que os outros… Os campos de férias são realizados nas Roças com as crianças da escola primária de lá. São muito diferentes… as crianças não dormem em campo, as casas ficam logo ao lado, e o campo para elas só funciona no primeiro período, da parte da manhã. À tarde é trabalho com os animadores. Há toda uma preparação com os animadores… pô-los a trabalhar, a organizar comigo, a ter ideias, e em campo tento que sejam eles os principais organizadores e avaliadores do seu trabalho. A burocracia fica comigo… pedir as autorizações às escolas, falar com o director, com as crianças, com a comunidade, com a Direcção Geral do Ensino. E as compras, também com eles, as ementas!!! Tudo comidas pesadas e eles comem tanto… tanto!!!”


Na Oficina de Português/Clube de Jornalismo...
“Deliram com as minhas expressões tão já Santomenses, como o “xê”, “cacaôôôô!” ou o “quê quá?!” e é muito enriquecedor pô-los a realizar notícias, ensiná-los a estar numa conferência de imprensa, encenámos uma quando lá levámos o Kalú Mendes ao clube, e tentar descodificar os textos que eles escrevem… tão non sense a estrutura. Surreal mesmo!!! E é outro mundo de crianças… 5º ano de uma escola de “elite”, mas tão iguais, com as mesmas necessidades, o precisarem do carinho na explicação e a adaptação na linguagem usada. E já me habituei a ouvir “proféssôra!!!”, mas no início era muito estranho… e assim todas as quarta-feira das 14h às 16h vou tentando passar e ensinar o meu amor pelo Português, de uma forma lúdica. Um ensino não formal que tanto me agrada e às crianças, que em grupo se sentam na biblioteca, também. Neste momento estamos a elaborar o jornal… 100% escrito pelos alunos, desde o editorial às notícias. Bem, só o Horóscopo, “do Ôbô”, é que não. É escrito pelo Stlijon Cacharamba… (eu e o João). O João, que é professor da cooperação e o meu melhor amigo nestas terras, tem sido uma ajuda importantíssima. O IDF é muito conservador… Os professores Santomenses ainda gozam do estatuto de Professor anterior ao 25 de Abril, a relação professor aluno é muito diferente da que estamos habituados, e mesmo não sendo, descontraída como sou… sempre na brincadeira... dando-lhes muita liberdade... o João lá vai pondo alguma ordem nos trabalhos e juntos lá lhes vamos levando a nossa língua, a quem já fala muito abrasileirado e comendo metade das palavras nas ideias que tenta transmitir. É engraçado notar como o Português falado em S. Tomé já tem a sua estrutura muito própria e como ainda utiliza termos e expressões de um português para nós tão longínquo, eu própria já o estou a apanhar...”
Catequese “...a surpresa… 3º ano de Crisma! Meu Deus… são maioritariamente mais velhos que eu e eu que nunca dei catequese do 7º ano para cima… e a experiência também não é muita. E eles cá são tão diferentes… Revolução total. Testes não vão haver, não, e muito menos ditar matéria, faltas vão ser marcadas a sério e os atrasos também. Música, orações e actividades para que a partilha seja natural e não forçada. Estranho, muito estranho ao início. Mas agora?! Entranhou-se e, no outro dia, não vindo um catequista houve um grupo que me veio pedir para assistir. Com todo o gosto!!!”
escuteiros...
“Que diferença entre o lenço verde e
o encarnado e branco! Já não estava habituada… e foram logo pôr-me com os caminheiros! Era a única secção a funcionar… amazing! Mas o caos… chefes que mal via e caminheiros com vontade de trabalhar… caminheiros, esses, com 28 anos para cima. Chefe Maria José pediu-me formação... Eu??? Nem faz sentido… com ela lá organizámos, lá convidámos outros chefes e lá se fez uma espécie de CIP. O desa-fio???? Preparar-lhes uma velada de armas… Um BI do dirigente, com leituras para reflectir. Que alegria, que sorrisos, que orgulho visível, foram precisos 5 anos para terem uma formação… e, assim, junto à praia o agrupamento da Sé recebeu novos chefes que agora vão recomeçar/começando o primeiro agrupamento marítimo de S. Tomé, ainda apenas nas actividades, tentar adaptar o progresso… ir caminhando agora que foi todo reestruturado. Também vou dando uma ajuda na Junta Central, mais de estar presente nas actividades nacionais e conversar, trocar ideias, demonstrar-lhes também que o trabalho cá feito é louvável e não se pode deitar tudo por terra, que não se pode desanimar…”

E depois desta viagem pelos projectos… algo que, também em Abril, foi escrito e que hoje contínua, não mais mais, mas quase, que ontem continua a fazer sentido “E assim vão sendo as minhas semanas... com mergulhos pelo meio e bolos de chocolate no companhia, passos de dança e conversas. Sem conseguir ter um dia igual ao outro e a adorar viver neste ritmo entre o leve-leve e o correr, entre o estar e o não criar dependência e na segurança e certeza que amanhã parto e vem outro para o meu lugar, receber os beijos e abraços, os mimos e os sorrisos que um dia também foram meus.
E… sem Ele, nada disto era possível… viver o essencial era impossível. Tudo é diferente... é completamente nova a vida que ele me propôs. O simples chamar das pessoas, o trato é tão diferente... até mesmo ofensiva a forma gritada com que se fala, a sua maneira… mas com Ele tudo é vivido, tudo é compreendido e a aculturação é feita, deixando para trás pressupostos tão nossos, tão pouco essenciais. O viver longe passa a ser apenas distante, fica perto. As missas num dia normal da semana, as orações espontâneas que a cada dádiva acontecem, os sorrisos e os “máfádá” escutados, o correio que, às quintas, chega, fazem despontar um sorriso, quando nem sempre apetece. Quando cá dentro o coração está pequeno pelas saudades, pelo que não se pode fazer, pelas vivências que se vão tendo, pela impotência de se fazer tão pouco, de não se poder fazer mais nesta seara que é enorme…
Mas Ele está, e enquanto Ele estiver, enquanto eu estiver Nele, tudo vale a pena. E é tão bom poder falar Nele, desde o carro praça (faz-lhes muita confusão que alguém esteja cá em voluntariado) até ao Bom Dia/Tarde Senhor nos CAEB’s, passando por aqueles que comigo se vão cruzando e, sabendo das dificuldades, como resposta à pergunta “porque não regressas?” ouvem que Ele está comigo e que se Ele me quer por cá, Ele lá sabe o que está a fazer. E é este enamoramento que me faz acordar todos os dias de manhã cheia de energia e trabalhar na sua seara de forma incessante. Cansada??? Nada!
Feliz! Muito feliz!!! Só assim faz sentido…”
e só assim tem sentido ter continuado nestas ilhas!

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